segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Entrevista: HERON COELHO



por Ruy Jobim Neto

Entrevistamos o diretor teatral (e também produtor musical) Heron Coelho na sala do seu apartamento, no sexto andar, em Pinheiros - numa tarde chuvosa -, e foi uma conversa entremeada por vídeos de shows por ele produzidos no seu ninho, o SESC Ipiranga, de onde ele se considera cria. A experiência reunida nesses anos todos depois de formado no Curso de Letras na USP (em 1999) o levou a dirigir, alguns poucos anos depois - dentre outras coisas -, obras de dois grandes nomes dos nossos musicais, Gianfrancesco Guarnieri e Chico Buarque, em toda a sua grandeza. Sob sua batuta, a atriz (e diretora) Georgette Fadel ganhou o Prêmio Shell de Melhor Atriz por "Gota D'água – Breviário " (de Chico e Paulo Pontes ). Ele acabou de dirigir um show no qual participou Maria Rita, é amigo e produtor musical de muitos nomes da MPB, descobriu outros, e tem lá suas idéias muito próprias sobre a atuação do diretor (que ele também chama de diretor-professor) em relação ao trabalho no Teatro. A mesma sala do apartamento de Heron, decorada com desenhos sobre Clementina de Jesus, onde a entrevista ocorreu, por sinal, é o mesmo local onde surgiram todos os espetáculos com toda a sua sensibilidade de artista, e todo o esplendor de seu pensamento, de suas idéias, pode ser conferido a seguir:



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TEATRO ENTRE VISTAS– Vamos começar então desde o seu Curso de Letras (na FFLCH-USP), Heron, e eu sabia que você já tinha toda essa predisposição para a música e um grande conhecimento de Literatura. Você tem um mestrado em Literatura (Brasileira) também, né? E daí, como se desenrolou tudo?



HERON – Fiz, mas eu fiz o Curso de Letras, você estava comigo naquela época, a gente conviveu, a morou junto inclusive. E eu comecei a tomar contato com pessoas muito interessantes como foi o caso do José Miguel Wisnik, e algumas pessoas que eu fui dirigir depois, como a Ná Ozzetti, a Suzana Salles, essa turma toda, a vanguarda. Mas a coisa só foi tomar uma proporção maior quando fui trabalhar com o Hermínio Bello de Carvalho, no Rio de Janeiro, como assistente. E aí eu comecei a perceber que aquilo que eu tinha aprendido na Letras, que era entender o texto, o texto literário, que fazia antologia, a antologia nada mais é um roteiro de show, por exemplo. E que o show nada mais é do que uma antologia musical e poética, com toda a liberdade, uma rapsódia da maneira mais livre possível. Foi a confluência de todas essas informações, essas referências mas que toma mesmo um corpo quando eu começo a entender aquilo que o Hermínio faz, que está com 70 anos agora, e está com sua bela biografia lançada, escrita pelo Alexandre Pavan, esse jornalista maravilhoso. E eu fui trabalhar com Hermínio, fiquei três anos trabalhando com ele, organizando sua obra, seus poemas, conhecendo gente e aprendendo. Quer dizer, na verdade, a minha formação artística se dá informalmente, através de grandes mestres, como por exemplo o Hermínio, a Myriam Muniz, que foi minha professora aqui em São Paulo. A Maria Alice Vergueiro que foi, é e continuará sendo eternamente uma mestra, porque a gente fez um disco agora, ela cantando Brecht e Weill.


TEV – Que é o "Vai de Weill"?



HERON - Foi o começo de tudo. É uma história muito longa, porque a Maria Alice ia cantar duas músicas, de repente vem um disco inteiro dela cantando Brecht. É a " Velha Dama Indigna", em homenagem àquele musical que ela fez com o Cacá (Rosset) na década de 80. A Maria Alice canta Brecht há quarenta anos. Teve o (Gianfrancesco) Guarnieri, que foi um mestre muito importante, o (Eduardo) Gudin, musicalmente, foi bem relevante, éramos muito amigos, dirigi muita coisa dele. Mas o meu trabalho mais espressivo foi em disco, o primeiro, com a Dona Inah, porque de repente ela apareceu pro Brasil. Ela se chamava Iná Silva, ela cantava com uma voz absolutamente maravilhosa, e ela virou um repositário, uma espécie de Clementina (de Jesus), mas do rádio, ela veio do rádio, quase como uma Omara Portuondo perdida dentro de um " Buena Vista (Social Club)" chamado "Ó do Borogodó" . Aí é que veio a minha relação com a arte, de ser um aglutinador cultural que abre frentes de trabalho. Aprendi com Hermínio. Ele me ensinou tudo isso. Assim, de repente você percebe que seu palco, seu discurso serve de espaço para uma fala recusada comercialmente pela ditadura mercadológica ... Em meus trabalhos você percebe que algumas figuras aparecem e se reiteram, constantemente: Marilia Medalha, Cristina Buarque, Maria Alice Vergueiro, Georgette Fadel, Vânia Bastos, Eduardo Rennó, Adriana Moreira, e mais um monte de gente boa...




TEV – A contramão ...



HERON – A contramão! É, seria o underground, a marginália construtiva, a marginália ativa. Foram eles que trabalharam a música e o teatro brasileiros, eles trabalharam e trabalham muito para a construção de . Eu acredito muito na alma brasileira. O meu trabalho está muito condicionado à alma brasileira...quem incutiu em minha vida a noção da alma brasileira foi o psicanalista Roberto Gambini. Muito do que fiz foi conduzido pelo ensinamento dele. E para ele.



TEV – Mas você já vinha com essa alma brasileira...



HERON – Inconscientemente, talvez inconscientemente. Mas acho que isso se sistematiza, quando eu fiz " Gota D'Água " eu dediquei a ele, você vê no programa, como "Orfeu da Conceição", com a releitura que eu fiz no SESC Ipiranga com a Georgette Fadel, a Tica Lemos e no meio desta turma, a Vânia Bastos. Então, de repente você vê que o teu trabalho passa a servir de uma espécie de veículo, por exemplo, você tem sua peça lá sobre as freiras e as putas (" A Farsa dos Agudos", comédia escrita por este repórter), eu sempre achei maravilhosa aquela peça, eu quero montar um dia aquela peça, muito brechtiano aquilo ali. Eu lembro muito daquela sua peça, eu vou montá-la, com certeza, ela está me esperando, né? É uma " Mahagonny", é uma "Happy End", tudo misturado, "Mahagonny" misturado com " Carmen", com Dias Gomes, com Jorge Andrade... Mas é isso. E isso foi uma trajetória, e aí eu comecei a me desdobrar, fazendo tudo, desde coordenação editorial de livros, como os livros do Hermínio sobre a Aracy de Almeida, antologia poética do Hermínio, livros do Ivaldo Bertazzo, depois ao mesmo tempo fazendo roteiro, trazendo de volta a Marília Medalha (há vinte anos fora do mercado), fazendo disco com a Dona Inah, comemorando os cem anos de Clementina, com livro e disco e um monte de coisa legal...




TEV – Tatiana Parra, Paula Picarelli...



HERON – Musas... Tatiana Parra é uma delas, Paula Picarelli, Paula Sanches. Uma turma, você vê, você está sabendo mais do que eu (risos). As minhas musas, né? E os meus musos, Aldo Bueno, Celso Sim, Ney Mesquita, que morreu.



TEV – O diretor musical de alguns espetáculos teus...



HERON – Alessandro Penezzi, que concorreu a prêmio Shell pela música do "Gota D'água", é o meu diretor musical. Então é uma turma muito unida, e unida dentro de uma idéia. Um amigo dizia: Companheiro é aquele que come o pão junto, e esse pão pode ser o pão que o diabo amassou, a gente tem que comer junto. Pode ser aquele belo brioche da Maria Antonieta, que lhe custou a cabeça, ou o pão que o diabo amassou. No nosso caso, no caso do artista, ele é meio saltimbanco, um dia ele tá comendo o brioche, noutro dia ...



TEV – E tem um momento em que você fala numa entrevista que "Gota D'Água – O Breviário" começou a ser lido, começou a ser ensaiado na sua casa.



HERON – Aqui, tudo nasceu na minha casa, os projetos de leituras cênicas para o Ipiranga, os roteiros dos últimos shows do Gudin, tudo nasce aqui. O " Giramundo" da Myriam (Muniz), o "Oratório", essas Clementinas pela parede, essa coisa apertada, mas tudo nasce aqui, e nasce sem pretensão, e nasce da maneira mais generosa do mundo. Eu não tenho pretensões. Por isso é que eu fico quieto, na minha. E vou fazendo. Porque de repente, quando você se coloca na postura de um realizador, a sua obrigação é maior do que a sua vaidade, do que a sua vontade de aparecer, entendeu? Mas os atores e os músicos aparecem, eu gosto que eles apareçam e sejam aplaudidos...




TEV – A luz é neles.



HERON – A luz é neles, né? Então eu acho bacana.



TEV – E daí para o homem de Teatro, ele foi aparecendo naturalmente?



HERON – Myriam Muniz.


TEV - E como foi sua trajetória até ela e depois dela?



HERON – Bom, o teatro já entrava um pouquinho nos musicais, né? O " Por Lamartine...Babo" tinha Maria Alcina e o Ney Mesquita, e textos do Oswald de Andrade, textos meus, textos de amigos, o " Canto da Guerreira " sobre a Clara Nunes com a Suzana Salles, a Fabiana (Cozza), a atriz Olívia Araújo, que faz "As Domésticas", o ator Celso Sim, do Oficina, ou seja, a música já contava com desdobramento cênico do texto, porque a letra da música, pra mim, sempre foi o texto, certo? Eu lembro que eu ouvia " Taí", o exercício que eu dava era o "Taí", que a Carmen Miranda cantava sempre pulando, feito uma louca. Na verdade, " Taí" é uma desgraça, né? "Eu fiz tudo pra você gostar de mim/ Não faz assim comigo, não/ Você tem/ você tem que me dar seu coração ". A letra é triste, mas é mascarada pela alegria, pelos confetes. Mas eu sempre acreditei no texto. E o que aconteceu? A Myriam fez com que isso fosse tomando um corpo maior. Aí eu comecei a fazer uma série de pequenas montagens chamada " Em Cena, Ações!" no SESC Ipiranga. E foi aí que a coisa pegou.



TEV – O SESC Ipiranga, como é que ele apareceu na sua vida?



HERON – O SESC Ipiranga é o meu berço, é a minha casa. Tudo o que eu fiz é lá, e é pra lá que eu faço. Comecei lá com meu primeiro trabalho, que foi o " Rainha Quelé" (de 2001), que era música e um pouco de texto, onde eu queria trazer a Marilia (Medalha) de volta, sobre a Clementina, eles compraram a idéia. E tinha tudo para ser um fracasso de trabalho, porque a Marília poderia não estar cantando, a Dona Inah poderia não dar conta, e a Fabiana (Cozza) poderia não continuar. E elas eram e são muito fortes, deram tudo o que tinham de melhor...



TEV – E você acreditou nas três.



HERON – Acreditei e via muita energia nelas. A Dona Inah cantava somente os cantos de trabalho, os cantos de macumba. A Marília entrava com jongos, aquilo era fantástico. E a Fabiana entrava com samba de terreiro da Mangueira. Então dividi a obra, o " Grande Rosário da Mãe Quelé ", um grande susto na minha vida, a voz de Clementina. Por isso é que eu fiz o livro dela, o "Rainha Quelé". Mas a gente tava falando do Em Cena Ações... Aí tomou forma mesmo o " Em Cena, Ações! ", quando eu fiz o "Liberdade, Liberdade", do Gullar, e o Gullar foi e fez uma crítica na Folha, dizendo que ele estava emocionado...



TEV- Isso faz lembrar o João Cabral de Melo Neto vendo, em Paris, o "Morte e Vida Severina" com o Chico.



HERON – Mas ali havia dois gênios, e aqui no caso o gênio é ele, e generoso. . Depois eu comecei, eu fiz o " Calabar", eu tinha um fascínio pelo "Calabar", um breviário do "Calabar", fiz um breviário do " Gota D'Água", que deu origem a esse maior, fiz o "O Rei da Vela " em fragmentos, fiz fragmentos do " Roda Viva". Chamamos uma turma louca, chamamos a moçada da EAD, com a moçada dos grupos daqui de São Paulo, com um pessoal da antiga, como a Maria Alcina, Zezé Motta, José Miguel Wisnik, a Cláudia Pacheco, o Celso Sim, quem mais estava?



TEV – Era um liquidificador .



HERON – Um liquidificador. É a anarquia. É não ter hierarquia. Eu queria colocar de repente a Maria Alcina, que era a grande diva do " Fio Maravilha", dos festivais, que passou por uns tempos pesados, e voltou com música tecno, e continua a mesma. É que nem o que o Vanzolini falou, eu trabalhei muito com o Paulinho Vanzolini. Ele diz que é amigo de artista no início e no fim de carreira... Acho que aprendi isso com ele. Eu dirigi a Maria Rita agora, em janeiro, com o Paulinho da Viola, e um monte de gente cantando coisas do Gudin, que é maravilhoso como compositor. Foi supertranqüilo...Eu fiz os desenhos de luz, as marcas cênicas, e deu tudo certo. No mesmo dia tinha a Ná Ozzetti, a Mariana Aydar, todo mundo artista e generoso, esse é o segredo: dividir sempre...e ensinar.E aprender modos e maneiras de ver... De repente você enxerga esta cantora de várias cores, e ela tem tudo isso pra te dar...A gente só precisa saber como colocar a mão nessa alma... É uma característica do meu processo...






TEV – E do seu estilo, também.



HERON – É. Por que senão não adianta. Eu sou da linha da Myriam, que dirigiu a Elis em " Falso Brilhante ", a Célia, que eu vou dirigir agora . Ela dirigiu a Célia em " Por um Beijo". Os meus métodos são esses, a Myriam, o Flávio Império que eu não conheci, o Guarnieri.



TEV – E agora uma pergunta dividida em duas: o que é dirigir um Guarnieri, o material de texto dele e também dirigir Chico Buarque ?


Heron Coelho com Marília Medalha e Gianfrancesco Guarnieri


HERON – O Guarnieri é pesado. O Guarnieri é seríssimo, não que o Chico não seja sério, mas o Chico, ele é mais musical. O Chico permite uma criação muito mais plena de elucubrações, de fantasias, de mágicas, de invenções. Nunca de improviso. Digo no texto, né? Ele é rico, ele permite uma profusão de cores, porque o teatro dele não está condicionado por ranços, por chibatas de uma ditadura. Pode ser até que o " Calabar" estivesse, o "Gota D'Água" também, a "Ópera do Malandro" também. Mas não como no caso do Guarnieri, porque o Guarnieri é chamado de datado, e, no entanto é um dos teatros mais ricos que existem em nossa dramaturgia. Ele faz um teatro funcional, aquilo nasce de dentro dele como uma grande revolta. Uma grande necessidade de desinfeccionar, é como se tivesse uma grande infecção que encontra no papel e no exercício, depois, no teatro, o exorcismo, a cura. Então o Guarnieri, eu acredito, não se preocupa com formas. Aí vem a função do diretor, de fazer com que aquilo fique sempre mais bonito. E assimilar e mostrar, olha, esse cara estava tão preocupado com Herzog enforcado, no " Ponto de Partida", que ele bota na peça um cara pendurado numa praça. E que às vezes a fatura pode ter resultado um pouco menor, mas um professor da USP, ele vai achar que o teatro do Guarnieri é menor, vai achar que o teatro do Vianinha é menor. Só que o Vianinha não teve tempo de fazer um teatro mais maduro. Ele morreu, mas teve tempo de deixar uma peça como " Rasga Coração", como "Papa Highirte", como o "Mão na Luva", né? " Se Correr o Bicho Pega"... Então para dirigir uma peça de Chico Buarque e do Paulo Pontes , eu tive que desconstruí-la. Que a peça é mais do Paulo Pontes. Eu tive que desconstruir, eu transformei, eu tirei do palco italiano e botei numa arena. Por isso se chama " Breviário", eu peguei a linha dorsal do texto, é um estilo que eu inventei para poder transformar em praticável aquilo que é impraticável, porque se você montar hoje aquele cenário com a grana que a gente tem, é impossível. A gente não pode montar " A Ópera do Malandro" do jeito que ela é.



(SOBRE MITOS)



HERON – Quando a gente analisa o outro é sempre ruim, né? Porque eu não gosto muito dessas pessoas que já querem ser mitos. A Myriam nunca quis ser mito, pelo contrário, olha, a Myriam e a Maria Alice (Vergueiro) são tão brechtianas que elas são anti-divas, anti-musas, anti-mitos e acabam se tornando grandes figuras. Agora,você vê essa máquina de fazer celebridades...Eles não conseguem nos convencer... Obviamente, se você passa a vida inteira ouvindo Chico Buarque, Edu Lobo, e vem aqui o cara tocando uma música de dois acordes, você vai saber falar que aquilo não é uma música boa, que aquilo ali é fraco. Agora, para mal entendedor pega: " oh que beleza", essa coisa meio under, fake, é um underfake. É preciso ter lucidez...Vivemos esse tempo de urgência... É diferente dirigir um Guarnieri e dirigir um Chico, por isso, pela forma com que ambos utilizam o discurso dramatúrgico a serviço de uma ideologia. Ambos partem de uma ideologia, mas a forma com que essa ideologia, ela pede para ser exorcizada, ela pede para ser expressa, essa fala, esse discurso que é uma fala recusada, como diz o Georges Bataille em "A Literatura e o Mal", que ela é o mal, e aí é que se dá a diferença.



TEV– E dentro dessa literatura teatral, o que é que você gostaria de montar? Você disse que vai montar o "Calabar".



HERON – Eu vou fazer o "Calabar" e o " Ponto de Partida", do Guarnieri, que são as duas peças que eu vou fazer, exatamente as duas perguntas que você falou. Vou montar simultaneamente, é algo muito maluco, e com os mesmos atores.



TEV – E como é essa sua visão, essa montagem simultânea com dois elencos?



HERON – Eu tenho um compromisso com o Teatro Musical Brasileiro. O Teatro Brasileiro bom, o nosso Teatro Brasileiro. A moçada tá saindo da ECA sem ler as peças do Guarnieri, sem saber quem é o Vianinha. Ou sabendo de uma peça que viu, quando muito, numa aula. Isso me preocupa muito, entendeu? E o Qorpo Santo? Aquela loucura toda?



TEV - ...que a Georgette Fadel montou..



HERON – Dirige maravilhosamente. Dirigiu "Preqária s", a Georgette é especialista. "Biedermann", "Orlando ", ela é uma diretora maravilhosa, e minha professora também.



TEV - Vamos pegar uma outra seara, então. Como é o Núcleo de Pesquisas Dramatúrgicas? Foi você quem criou?

HERON – Foi uma invenção pra conseguir viabilizar idéias e projetos. Quer dizer, nesse Núcleo de Pesquisas Dramatúrgicas, a gente escolhia uns textos e dava pra turma. E tinha espaço para eles ensaiarem e poder estrear em algum lugar. Eu nunca tive um espaço e dizia "venha ensaiar aqui". Não. Eu criava, eu comecei a ler muito, a pesquisar muito, a estudar muito. Eu sou bruto, não sei nada, e preciso aprender sempre. E eu gosto de artista inteligente...A gente tem que saber o seguinte: a pessoa que é inteligente, ela é inteligente com ou sem cultura. E se ela for inteligente, ela vai ter cultura em uma semana. Você pega uma pessoa inteligente, você dá o " Woyzeck" para ela ler, ela vai entender tudo aquilo. Ou se ela não entender, ela vai fazer uma bagunça, e no caos ela vai entender tudo. Vai começar a pesquisar. Assim como Música. Você pega uma pessoa mais pendendo para uma faixa de idade, que saia da faculdade e não tenha base, quer dizer? O que você vai esperar? Vai ter que ensinar. Tem que ser generoso. Eu aprendo todo dia com os mestres...Eu encontro a Maria Alice pra ela me contar histórias, e falar sobre o Brecht. São aulas longas, em forma de conversa. E eu, aprendendo...




TEV – Tem gente que não gosta disso.



HERON – Não gosta. Não sabe que quem está dirigindo aprende também ensinando, com a ignorância. Eu gosto da ignorância. A ignorância é essencial. Também se você pega um elenco em que todo mundo sabe tudo, é um saco, fica uma coisa jocosa, pastosa, janota. O negócio é também ter uma ignorância. Eu sou ignorante. Graças a Deus.



TEV – E o processo desse Núcleo de Dramaturgia, como é?



HERON – Não havia espaço para o autor, para algumas peças que não estavam nem editadas mais, como peças do Guarnieri, que nem " Um Grito Parado no Ar", que tem músicas maravilhosas. " O Botequim", que tem músicas do Toquinho.



TEV – Mas e a questão dos direitos?



HERON – Eu falo direto com a família do Guarnieri, o Guarnieri ficou meu amigo. Ele viu que a transa era outra. Ele viu que a jogada era outra. Era a mesma jogada dele. Agora, obviamente que o " Gota D'Água" me dá mais trabalho, porque o Paulo Pontes morreu, então eu tenho que falar com a SBAT. A SBAT não facilita a execução do texto nacional. Tente montar um Paulo Pontes pra você ver... Porque uma companhia, como a Cia. de Domínio Público, que é a companhia que trabalha comigo, que não tem dinheiro, não tem Fomento, e quer montar uma peça do Dias Gomes, a SBAT cobra cinco mil reais, e não tem como uma companhia pobre pagar cinco mil reais, então eles não vão fazer essa peça, entendeu? Então uma peça do Dias Gomes é interditada pela força da grana que destrói coisas belas. E, infelizmente, existem catalisadores para essa destruição...É foda.

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TEV – Ou melhor, é broxa!



HERON – É verdade, é broxa! Eu vou parar de dizer que é foda!


TEV – E como foi que apareceu o Guarnieri na sua vida, a Myriam Muniz?



HERON – Marília Medalha nos apresentou. Fizeram juntos o " Arena conta Zumbi", eles eram apaixonados um pelo outro, eram muito amigos. A Vânia, mulher do Guarnieri, que também era atriz, é amicíssima da Marilia. E aí um dia a Marília me leva até à casa do Guarnieri pra conhecê-lo. Eu me apaixonei por ele. E nós fizemos uma música que foi utilizada na releitura de " Arena Conta Tiradentes" e no "Arena Conta Zumbi" que eu montei com a Marília novamente, no ano retrasado, um ano antes de ele morrer. E no ano passado, em novembro, eu refiz um especial sobre ele no SESC Ipiranga, com a Marília novamente, com a Maria Alice Vergueiro, com a Nábia Vilella, um elenco maravilhoso, o Marat Descartes, que ganhou o Prêmio Shell de Ator pelo " Meu Primeiro Amor". Na verdade sempre foi a paixão. Eu sou apaixonado pela música e pelo texto do Guarnieri. É uma coisa absurda. Na peça " Ponto de Partida" ele diz:(canta) " quantos carneirinhos / quantas vidas rasas / que será do mundo / no calor das casas / se meus carneirinhos não criassem asas / que será do mundo / no calor das casas" . Isso é Sergio Ricardo, tem um enforcado na peça, o pastor tá louquinho, louquinho e ele fala: " desce daí, desce daí, Bido, desce, eu sei que você tá brincando, Bido" . o enforcado é o Herzog. Esse pastor é o retrato da nossa alma massacrada.



TEV – E como é que você tem visto a cena paulistana?



HERON – A cena paulistana é o que acontece, né? O que me chama a atenção na cena paulistana são as companhias, a resistência das companhias, como a Cia. São Jorge (de Variedades), a Cia. Bartolomeu, teatro de pesquisa. Esse teatro do Centro eu não vejo, Gosto dos Trabalhos de grupo, entendeu? Não queira fazer uma coisa underground, até para ser underground você tem que estudar e pesquisar. A Georgette sua muito pra trabalhar, o Gero Camilo sua muito, o Marat sua muito, e tudo com quinze anos, vinte anos de carreira. Eles precisam e mrecem espaços...Acho que isso está acontecendo...



TEV – Tem aqueles que querem ser lembrados pela mídia...



HERON – É! Os deslumbrados! Por algum momento emergem, também porque não vão abrir concessões, não vão fazer novelas, não vão fazer propaganda para a Petrobrás.



TEV – Como você mesmo coloca, que "a máquina da TV é muito boa para quem sabe usá-la".



HERON – Pra quem sabe usá-la. A Paulinha Picarelli sabe usar com inteligência. E muito bem. A pessoa que faz uma homossexual numa novela horrorosa e consegue ter uma projeção à favor, isso é inteligência... Hoje faz um programa de Literatura, e fazer uma peça de Virginia Woolf (" Do que Orlando me Disse", dir.: Georgette Fadel)... A Paulinha Picarelli é muito forte, segura... agora tem gente que não consegue, não sabe, que deslumbra, né? Agora, a cena paulista é muito boa. A cena paulista é onde acontecem coisas. " Gota D'Água" é de São Paulo, meus atores são de São Paulo, meu Núcleo é de São Paulo. A música é de São Paulo, o espaço pra música é São Paulo. O pessoal que é do Rio vem do Rio pra trabalhar em São Paulo. Lá no Rio tem História, aqui em São Paulo tem trabalho.



BRECHT



HERON - O único artista estrangeiro, o único dramaturgo estrangeiro que eu faço, cito e coloco no meio dos meus textos, das minhas leituras brasileiras, é o Brecht. De repente, do nada, no meio do " Gota D'Água", o Mestre Egeu começa a dizer Brecht. Quando tudo mundo dá as costas pra ele e ele vai defender a comadre Joana pro Creonte, e o Creonte começa a subornar a Vila do Meio-Dia. E aí começa a recuar, e mestre Egeu fica sozinho e como se caísse do nada, antes de começar a cantar a música, que não está na peça, que é " Levantados do Chão", que depois de trinta anos o Chico faz essa música, mas a questão da reforma agrária já tava no " Gota D'Água", ele, mestre Egeu, vira Brecht e pergunta: " Em tempos sombrios, se cantará também? Em tempos sombrios, se cantará também?" E o Brecht respondia: "também se cantará sobre os tempos sombrios ". Só que a reposta do mestre Egeu é a canção popular, que ele entoa em seguida. Então o Brecht entra muito no meu trabalho, em tudo, não é à toa que eu fiz disco com a Maria Alice Vergueiro, com ela cantando Brecht. A obra do Brecht é a minha respiração, eu respiro Brecht. Artaud, por exemplo, pra mim não dá. É Brecht, pelo menos hoje, nesse momento...




TEV– E aquela experiência com os autores, "Os Cantos Negreiros", no Itaú Cultural, como foi?



HERON – Foi maravilhoso. Dirigi Literatura. Transformei Literatura em Dramaturgia, do Marcelino Freire. Mas só foi aquele dia, depois eles mudaram tudo, porque a gente brigou. Mas transformar Literatura em Dramaturgia é fácil para quem já trabalha com Literatura, fácil para quem trabalha com Dramaturgia e quem trabalha com Música. A minha cabeça, ela pensa em rapsódia, que é um grande poema lírico, a Rapsódia Brasileira, a Rapsódia In Samba, que eu vou fazer com o Danilo Caymmi agora, um musical, entendeu? De repente, entra o seu desenho, entra o Jarbas (personagem de quadrinhos deste repórter), entra a voz da cantora, entra tudo, entra o psicológico, entra o profissional, tudo misturado. Não se hierarquiza, não se padroniza. Eu posso até dizer: " você vai dirigir, fulano, atua", mas na hora do processo, é tudo misturado. Eu não posso dizer: "isso é uma coisa que compete à direção". Quando acontece essa troca de experiências, isso aconteceu muito no " Gota D'Água". Por isso que nós somos muito felizes. O "Gota D'Água" foi um casamento, deu certo, foi um sucesso por que foi um casamento entre um homem e uma mulher, eu e a Georgette Fadel. Uma família precisa de duas figuras, o pai e a mãe. E nós somos. Pode ser que caiba a separação um dia, mas é infinito enquanto dure.

TEV - E o que tem te tocado, da cena paulistana, ultimamente?

HERON - Tem, tem coisa. O trabalho do Grupo XIX (de Teatro), " Hysteria ", de onde saiu a atriz Gisela Millás. O que me tocou muito foi o "Frátria Amada (Brasil)", da Cláudia Shapira, com o Grupo Bartolomeu. "Memória das Coisas ", do (Luís Alberto de) Abreu. O que me toca muito? Tem muita coisa que me toca. " Stella do Patrocínio", Georgette Fadel e Lincoln Antonio. "Agreste" (dir.: Márcio Aurélio). O Marat Descartes, com Gero Camilo ...

TEV - Dirigidos pela Cristiane Paoli-Quito.

HERON - A Quito é a sucessora da Myriam Muniz. A Quito é a sucessora da Myriam Muniz no Brasil. Isso é o que eu queria que você colocasse. Cristiane Paoli-Quito é a sucessora da Myriam Muniz. A Quito, tudo de bom que existe no Teatro Brasileiro, de contemporâneo, de ator, passou pelas mãos de Cristiane Paoli-Quito. Isso aí, seja no " Nova Dança ", que acabou, seja na EAD, eu dedico o meu trabalho novo a Cristiane Paoli-Quito, tamanho o meu amor por ela.

TEV - E a dramaturgia atual brasileira?

HERON - Eu acho fraca.

TEV - Não tem nada que te diga: "ah, eu quero montar isso"?

HERON - Não. O meu contemporâneo é a Leilah Assumpção. Parou aí. Parou na Consuelo de Castro, vai até você.

TEV - Parou no livro do Sábato Magaldi.

HERON - Parou no livro do Sábato Magaldi. Você é citado lá?


TEV - Não. (risos) Mas a entrevista não é comigo, é contigo (risos).

HERON - Mas um dia ainda vou dirigir aquela sua peça.

TEV - E como é que você concebe o seu espetáculo teatral? Você pega o texto e daí?

HERON - Primeiro o texto, e toda uma loucura que tá subjacente neste texto. Eu gosto muito da loucura. Eu sou fã da Ana Carolina, a cineasta. Eu sou discípulo da Ana Carolina. Eu cresci assistindo ao " Mar de Rosas", ao "Das Tripas Coração", e depois "Amélia", que a Myriam Muniz fazia. Então a primeira coisa que me chama a atenção é a possibilidade que eu tenho de desenvolver a loucura, de fazer aquilo extravasar, e se ficar hermético, tem que ter o compromisso de emocionar. Porque o hermetismo pelo hermetismo, o hermetismo pela intelectualidade ninguém entende nada, fica uma merda. O que acontece? O processo que eu tenho, que é tímido, que é um processo pequeno, caseiro, tacanho, simplório, na onda da Adélia Prado fazendo poesia, em casa, entre um santinho, o arroz batido, a farinha, fazendo o bolo, o cafezinho, o marido e ela fazendo poesia. Mais ou menos nesse processo. O que acontece? Primeiro a abordagem do texto, o que o texto tem pra me dar. Depois toda essa loucura, essa fantasia que pode transbordar desse texto, por meio da experiência particular e depois da loucura que eu consigo trabalhar eextravasar com o ator. E essa intuição que entra como algo condutor. E vai conduzindo, por exemplo, eu me lembro que num ensaio recente, sobre a Aracy Côrtes com a Gisela Millás, ela encontra com ela mesma jovem, a ânima jovem, ela abraça, tenta abater, ela mata, mata, quando ela percebe que ela tá sufocando ela mesma, por que é a ânima dela moça, rola uma " Persona" ali, do Bergman. Rola uma "A Mais Forte", do Strindberg, né? Ela começa a segurar com força, aí a atriz ...faz carinho....E deixou. E aí eu falei: " Não. Você tem que jogar e matar e sair horrorizada, aí você dá uma quebra brechtiana ". São essas intuições. Aí ela ficou meio puta um pouco comigo, por que falou que eu tava querendo mudar tudo, por que eu cheguei de última hora, que eu sou sempre assim, e aí eu falei pra ela: " você, eu vejo você e esta cena de todas as cores possíveis e impossíveis, eu vejo esta cena, eu vejo você verde, eu vejo você amarela, eu vejo você rosa, eu vejo você cinza, pink, azul da Prússia, agora se você só me der o roxo, não vai dar ". Então tem que ter uma abertura, se eu tô aberto para enxergar essas coisas, você tem que estar aberto pra me dar também. São essas abordagens em que entra a intuição e às vezes também - e eu vou dizer pra você uma coisa, muito particular : no processo de criação existe uma relação com algo divino. Deus, de repente, fica muito generoso (e nem sempre é assim), e Ele sopra coisas. Seja em sonhos, seja em insights, Ele sopra coisas, Ele fala: " Hoje este aqui está merecendo". Então não podemos nos esquecer disso. Rola uma transa mediúnica também, não adianta dizer que não, uma transa espiritual, não tem como não. Porque tem certas coisas que fogem do cognitivo, porque o cognitivo às vezes é cartesiano demais para conseguir dar conta de certos desdobramentos como " Gota D'Àgua", que é cheio, cheio, cheio de símbolos. É isso.

TEV - Obrigado.

HERON - Eu é que agradeço.

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Escreveu Ruy Jobim Neto